Lições para o ambiente com a covid-19? "A vida irá tristemente voltar à normalidade"

Entrevista originalmente publicada no Diário de Notícias.

A comunidade científica está apreensiva. E descrente. A pandemia de coronavírus também é um "grito de alerta" da natureza? Não podemos continuar a ser displicentes, até porque desta vez a espécie ameaçada somos nós.


Como será o ambiente em Itália, Espanha ou EUA assim que a pandemia de coronavírus comece a amenizar? Milão vai voltar a ser o pulmão negro dos Alpes? Espanha vai continuar a alimentar a fome de Madrid? E os EUA vão continuar a achar normal ter alguém como Trump presidente e Wall Street como coração do capitalismo global? Se assim for, então Bolsonaro tem razão, é só um "resfriadinho económico".

Questões levantadas pelo biólogo Nuno Gaspar de Oliveira, cofundador da primeira startup portuguesa de consultoria em biodiversidade e ecossistemas. Em entrevista ao Diário de Notícias, torna-se evidente o desalento deste antigo colaborador do World Wide Fund for Nature (WWF), que tem sérias dúvidas de que sejamos capazes de aprender com as crises. "O fascínio com a sociedade pós-moderna e a tecnologia digital está a causar uma cegueira profunda no que ao mundo natural se refere. A vida irá tristemente voltar à normalidade, e vai continuar a trazer esta e outras crises."


A crise desencadeada com o surto de coronavírus deve ser vista como uma oportunidade para refletir sobre o ambiente?
A minha dúvida é mesmo se não devíamos refletir profundamente sobre a nossa relação com o meio ambiente mesmo sem covid-19. A nossa dependência é total e draconiana, embora atuemos de uma forma displicente e mesmo ofensiva, com um conceito subjacente de recursos infinitos e de crescimento económico acima de todas as coisas. Antes deste vírus tivemos outros, desde o VIH ao ébola e à "gripe das aves", intimamente ligados à nossa invasão e exploração do mundo natural e das espécies selvagens. O mundo não é a nossa "ostra", não podemos continuar a agir como se fôssemos os únicos a ter direito a esta casa e a tudo o que ela contém.

"Desta vez é como nos filmes de Hollywood, onde tudo sempre acontece em Nova Iorque. Essa mesma Nova Iorque que hoje mesmo enfrenta dezenas de milhares de casos potenciais de infetados."

Europeus e norte-americanos, seriam consideradas completas calamidades. Desta vez é como nos filmes de Hollywood, onde tudo sempre acontece em Nova Iorque. Essa mesma Nova Iorque que hoje mesmo enfrenta dezenas de milhares de casos potenciais de infetados, desde a Fifth Avenue a Wall Street, bem no coração do capitalismo.

E mesmo nós, por cá, estamos prestes a cair de joelhos com a queda do setor automóvel e dos combustíveis. Nem a aposta no turismo consegue ser resiliente perante uma crise como esta. Se não for desta vez que percebemos que temos de criar uma economia de base natural, que beneficie do restauro dos ecossistemas e das suas funções, que veja na criação de simbioses industriais e na economia circular uma fonte de inspiração e inovação e que reconheça nos milhares de hectares abandonados à sua sorte por esse país fora uma fonte de potencial para a bioeconomia e produtos e serviços, bem como um cofre de capital natural suportado pelo valor económico dos serviços dos ecossistemas, então, temo que o nosso futuro continue a ser um arrastar de crise em crise, de conjuntura em conjuntura, até nos tornarmos uma economia zombie e uma sociedade completamente dependente das decisões externas, vindas de Washington, Bruxelas ou Pequim, será indiferente.

Depois da crise, espera-se uma intensificação da atividade industrial. Os planos para recuperar a economia não farão disparar as emissões?
As emissões são um sintoma da crise, e, a meu ver, nem sequer o mais grave. Se tivéssemos mantido e melhorado o tecido natural, desde as florestas, onde incluo desde as plantações industriais aos bosques e montado, passando pelas importantíssimas zonas húmidas e ribeirinhas e matagais, haveria muito mais capacidade para metabolizar os efeitos mais danosos do desenvolvimento económico.

"Temos de repensar toda a nossa indústria, não só em termos de baixar as emissões, mas, acima de tudo, de a tornar uma indústria de simbiose entre si e o meio natural."

Mas não foi essa a aposta, as plantações têm graves problemas de ordenamento, os bosques naturais são residuais e não são geridos, as zonas húmidas e ribeirinhas são transformadas em zonas urbanas ou de agricultura industrial intensiva e os matos são reduzidos a pasto para incêndios. Qual seria a quantidade de emissões que estes ecossistemas conseguiriam mitigar, quão importantes são na adaptação às alterações climáticas e curso, quantas emissões não estão associadas à degradação e perda de capacidade de retenção de carbono dos mesmos? A febre aumenta e continuamos só a pensar nos comprimidos para a baixar, quando em boa verdade é todo o sistema ecológico que dá fortes sinais de colapso.

Temos de repensar toda a nossa indústria, não só em termos de baixar as emissões - que é fundamental, mas básico - mas, acima de tudo, de a tornar uma indústria de simbiose entre si e o meio natural, em que os outputs da mesma contribuem positivamente para soluções de base natural, o restauro dos ecossistemas e das suas funções e o suporte das comunidades de pessoas que dela dependem e a fazem depender.

O jornal EUobserver levanta a hipótese de a pandemia global poder colocar em causa a ação climática da União Europeia. A comunidade científica está apreensiva?
A sociedade, atualmente, está apreensiva a correr obituários e a contar as vítimas do covid-19, mas permanece indiferente a outras estatísticas, como as vítimas diretas e indiretas das alterações climáticas. Continuamos a agir como se houvesse um tipo de mortes que é uma tragédia e outra que é estatística. Somos todos humanos. A comunidade científica tem de estar apreensiva por esta nossa miopia distópica. Numa era em que podemos tão facilmente reunir-nos em torno das opções de resolução destes problemas, como tão amplamente está a ser demonstrado pelos esforços conjuntos para responder à pandemia, porque hesitamos tanto em reconhecer os problemas de base ecológica ao mesmo nível? Não sei responder, mas parece-me que este nosso fascínio com a sociedade pós-moderna e a tecnologia digital está a causar uma cegueira profunda no que ao mundo natural se refere.

Todos os encontros climáticos bilaterais estão suspensos. Também as Nações Unidas estão em pausa. Encontros fundamentais para preparar a Cimeira do Clima COP 26, agendada para novembro, em Glasgow. As metas não ficarão por cumprir?
E estavam a ser cumpridas com todas as cimeiras a serem normalmente realizadas por agora? Tenho cada vez menos fé em ações centralizadas em governantes de topo, mas mais esperança nas ações descentralizadas e de base comunitária que se vão desenvolvendo por todo este mundo, desde as greves climáticas às ações de resistência pacífica pela defesa do património natural, as gerações estão a encontrar um fito comum, seja pela via da defesa dos direitos humanos, que poderão estar a ser postos em causa pela incapacidade de as nações industriais lidarem com a sua responsabilidade pelas alterações climáticas, como pela salvaguarda da fragilidade e da beleza das formas de vida que se vão desvanecendo sob os pés da nossa caminhada pelo progresso e o crescimento infinito. Muitas vozes, de jovens e adultos inquietos, estão a unir-se a dizer claramente: outro mundo é possível e é possível começarmos já este processo de transformação.

Tempos de grande mudança podem ajudar a enraizar novos hábitos. Poderá esta ser uma oportunidade para estimular a economia a apostar em energias mais limpas. E no que toca à sociedade, é de prever que se comece a assistir a comportamentos mais sustentáveis? Menos consumo, menos viagens, uma maior aposta em produtores locais, em transportes ecológicos?
Quero acreditar que sim, que as notícias de revenge spending que nos chegam de Wuhan [China] são um sintoma de uma classe privilegiada que só se vê realizada no papel de consumidora e proprietária. Como é possível ter notícias a circular a avisar que a classe de elite está à procura de remédios à base de bílis de urso para se prevenir do covid-19? Às vezes tenho sérias dúvidas de que sejamos realmente capazes de aprender com as crises. Tenho muita curiosidade de ver como será a vida em Itália, Espanha ou EUA assim que a pandemia comece a amenizar. Milão vai voltar a ser o pulmão negro dos Alpes? Espanha vai continuar a alimentar a fome de Madrid? E os EUA, vão continuar a achar normal ter alguém como Trump presidente e Wall Street como coração do capitalismo global? Se assim for, então Bolsonaro tem razão, é só um "resfriadinho económico". A vida irá tristemente voltar à normalidade, e vai continuar a trazer esta e outras crises.

"Não é, nem pode ser, um luxo imaginarmos e implementarmos novos modelos sociais e económicos."

As videoconferências e o trabalho remoto estão a mostrar que podemos facilmente, e com muito conforto, poupar milhões de litros de combustível e de horas de vida de forma produtiva e economicamente interessante. A transferência de capital que pode ser feita da economia fóssil para a economia de base familiar, em que finalmente passamos a estar mais tempo com os nossos entes queridos do que enfiados num carro ou num escritório a olhar o dia inteiro para um computador é algo que está por contabilizar, e que pode mudar o rosto das cidades e dos perímetros urbanos e levar milhões de pessoas a optar por viver em vilas e cidades do interior, por só ser necessário ir às grandes cidades e capitais de forma muito mais ocasional. E com isso desenvolvem-se comunidades, criam-se PME, até ecossistemas industriais novos, é todo um mundo por explorar.

O ativista David Attenborough diz ser imprescindível começarmos a ter uma existência sustentável na Terra. Como prevê o impacto desta desaceleração económica na biodiversidade?
Eu aposto mais na aceleração do reconhecimento do valor económico da biodiversidade. Estamos a tratar bens e serviços ecológicos fundamentais para o nosso bem-estar e progresso como se valessem zero ou abaixo disso. Reconhecemos como normal o preço de uma garrafa de água ou de um seguro contra desastres naturais, mas damos o valor de zero e como fonte de despesa constante à conservação da natureza e ao restauro dos ecossistemas que nos dão água, resiliência a desastres naturais e outros serviços que valem milhões.

"Nunca antes houve tantas oportunidades para os agentes patogénicos passarem de animais para as pessoas, em resultado da devastação dos habitats." Segundo a diretora-geral da União Internacional para a Conservação da Natureza, Inger Andersen, a pandemia de coronavírus é um "grito de alerta" da natureza, que ilustra os enormes riscos associados ao comércio de animais selvagens e à perda de habitats. Subscreve as suas palavras?
Em absoluto, e reforço a ideia de que não podemos agir sem consequências. A invasão e a destruição da natureza e da biodiversidade não vai acontecer de forma pacífica nem segura, seja pelo risco de desregulação de serviços ecológicos, como doenças e pragas agrícolas, seja pela perda de resiliência a desastres naturais. Desta vez, a espécie ameaçada somos nós. Se o coronavírus não deixar isso claro, não sei do que mais precisamos.

O facto de a Europa estar no epicentro da pandemia não poderá ameaçar o Green Deal?
A Europa representa apenas uma fração do mundo, quer em pessoas quer em economia, mas será porventura o último grande Farol de Alexandria, que nos pode ajudar a navegar entre este tumulto. Se falharmos, as consequências são impensáveis.

É essencial colocar a natureza no centro das decisões, para impedir a perda cada vez mais rápida dos habitats, o declínio ambiental e salvaguardar o nosso futuro? Que lição se deve retirar disto?
Somos um produto da natureza, quer queiramos quer o decidamos ignorar. Por alguma razão ainda não vivemos na Lua ou em Marte. Vivemos na Terra e dependemos em absoluto dela e dos seus sistemas ambientais e ecológicos. Não posso ser mais claro.

Uma mensagem para os tempos vindouros?
Temos de nos religar ao mundo natural e reencontrar o nosso lugar, e então as respostas vão chegar e mostrar as diversas e incríveis opções que ainda temos para construir modelos sociais e económicos onde a prosperidade e o restauro da vida e dos ecossistemas vão ser a derradeira simbiose.

Nuno Gaspar de Oliveira
Biólogo (Ecologia, FCUL). Em 2005, foi cofundador da primeira startup portuguesa de consultoria em biodiversidade e ecossistemas, tendo trabalhado com empresas de referência. Entre 2010 e 2014 cooperou com o World Wide Fund for Nature (WWF). Foi ainda docente em Economia dos Recursos Naturais do ISG Business and Economics School. Pós-graduou-se em Geografia e Planeamento Territorial na FCSH/Nova e em Engenharia e Gestão, DEG/IST. Atualmente, é ecosystem manager no Esporão SA, docente em gestão da Sustentabilidade no IDEFE/ISEG e cofundador da NBI - Natural Business Intelligence.